sábado, 29 de outubro de 2011

O sociólogo na sala de aula



Em entrevista concedida à Revista Brasileira de Educação em setembro de 1996, durante breve
estada no Brasil, o sociólogo François Dubet reflete sobre a sua experiência de um ano como professor
de história e geografia em um colégio da periferia de Bordeaux, França. Conhecido por suas pesquisas
sobre a juventude marginalizada na França, François Dubet quis vivenciar, diretamente como professor,
os dilemas da escola francesa contemporânea.
François Dubet é pesquisador do Centre d’Analyse et d’Intervention Sociologiques (CNRS - École
des Hautes Études en Sciences Sociales), professor titular e chefe do departamento de sociologia da
Universidade de Bordeaux II e membro senior do Institute Universitaire de France. É autor de mais
de uma dezena de livros, entre os quais:
Paris: Seuil, 1991;
Sociologie de l’experience. Paris: Seuil, 1994 (Edição portuguesa: Lisboa, Instituto Piaget, 1997) e A l’école. (com Danilo Martucelli) Paris: Seuil, 1966.

Por quê, enquanto pesquisador, você escolheu lecionar por um ano em um colégio?

Eu quis ensinar durante um ano por duas razões um pouco diferentes.
A primeira é que nos meus encontros, coletivos ou individuais, com professores, eu tinha a impressão
de que eles davam descrições exageradamente difíceis da relação pedagógica. Eles insistiam
muito sobre as dificuldades da profissão, a impossibilidade de trabalhar, a queda de nível dos alunos,
etc. E eu me perguntava se não era um tipo de encenação um pouco dramática do seu trabalho.
A segunda razão é que, durante uma intervenção sociológica com um grupo de professores, encontrei
duas professoras com uma resistência muito grande ao tipo de análise que eu propunha. Elas  deixaram o grupo. Uma delas escreveu uma carta em que me criticava particularmente por não ter lecionado, de ser um “intelectual”, de ter uma imagem abstrata dos problemas. Foi um pouco por desafio que eu quis dar aulas para ver do que se tratava.
Devo dizer que esta experiência não era nada central para mim já que não era o coração do meu
trabalho de pesquisa; nunca imaginei seriamente escrever um livro sobre a minha experiência de professor. Assumi uma classe de
Podemos dizer muitas coisas sobre esta experiência. Logo, me dei conta de que a “observação participante” era um absurdo. Durante duas semanas, tentei ficar observando, isto é, ver a mim mesmo dando aula. Mas após duas semanas, estava completamente envolvido com o meu papel e eu não era de maneira algum um sociológo, embora tivesse me esforçado para manter um diário de umas cinquenta páginas no qual redigi minhas impressões. Entretanto, não acredito que se possa fazer pesquisa se colocando no lugar dos atores; eu acho que é um sentimentalismo sociológico que não é sério ou que supõe muitas outras qualidades diferentes das minhas. Contudo, eu fiz este trabalho em boas condições pois fui muito bem acolhido pela grande maioria dos professores que ficaram bastante sensibilizados pelo fato de eu ir dar aulas e tive realmente muito apoio, muita simpatia (...) Aliás, não é preciso esconder que o fato de ser um homem no meio de mulheres pode também ajudar. Era um clima bastante agradável.troisième (3º ginasial) e que o menino tivesse 1,80 m e pesasse 75 kilos, eu estaria com problemas. Ou se eu fosse uma jovem professora de 22 anos, não sei como teria reagido.Você disse que fez um “golpe de estado”.?

Depois de dois meses, eu estava um pouco desesperado: eu não conseguia nunca dar a aula. E então
um dia, fiz um “golpe de estado” na sala. Disse aos alunos: de hoje em diante não quero mais
ouvir ninguém falar, não quero mais ouvir ninguém rir, não quero mais agitação. Aliás, não era bagunça, era agitação. Eu disse: vocês vão colocar as suas cadernetas de correspondência, a caderneta em que se colocam as punições, no canto da mesa, e o primeiro que falar, eu escrevo a seus pais, e ele terá duas horas de castigo. E durante uma semana foi o terror, eu puni. De fato, facilitou a minha vida e tenho a impressão de que esta “crise”deu aos alunos um sentimento de segurança, já que eles sabiam que havia regras, eles sabiam que nem tudo era permitido.
Depois, as relações se tornaram bastante boas com os alunos e bastante afetuosas. É preciso
reter desta história extremamente banal que o fato de ser sociológo pode permitir explicar o que acontece, mas não de antecipar melhor que a maioria das pessoas.


A minha primeira surpresa, e que é fundamental, corresponde ao que os professores dizem nas
suas entrevistas. Os alunos não estão “naturalmente” dispostos a fazer o papel de aluno. Dito de outra forma, para começar, a situação escolar é definida pelos alunos como uma situação, não de hostilidade, mas de resistência ao professor. Isto significa que eles não escutam e nem trabalham espontâneamente, eles se aborrecem ou fazem outra coisa. Lá, na primeira aula, os alunos me testaram, eles queriam saber o que eu valia. Começaram então a conversar, a rir (...) Um aluno, um menino que estava no fundo da sala, fazia tanto barulho que eu pedi para ele vir se sentar na frente. Ele se recusou. Fui buscá-lo, o levantei e o trouxe para frente. Ele gritava: “Ele vai quebrar meu ombro!” Bom, finalmente, depois de dez minutos, houve um contato (...) fiquei muito contente que o menino tivesse 13 anos, pois se tivesse pego uma classe de
A minha segunda surpresa: é preciso ocupar constantemente os alunos.Não são alunos capazes
de fingir que estão ouvindo, sonhando com outra coisa e não fazer barulho. Se você não os ocupa com alguma coisa, eles falam. É extremamente cansativo dar a aula já que é necessário a toda hora dar tarefas, seduzir, ameaçar, falar (...) Por exemplo, quando a gente fala “peguem os seus cadernos”, são cinco minutos de bagunça porque eles vão deixar cair suas pastas, alguns terão esquecido seus cadernos, outros não terão lápis. Aprendi que para uma aula que dura uma hora, só se aproveitam uns vinte minutos, o resto do tempo serve para “botar ordem”, para dar orientações. Tive muitas dificuldades.
Por exemplo, não sabia como contar histórias e fazer com que os alunos escrevessem ao mesmo tempo. (...)

cinquième, 2º ginasial (que começa após os cinco anos de escola elementar), com crianças de 13/14 anos, em um colégio popular, bastante difícil em que o nível dos alunos é baixo e dei aulas durante um ano. Portanto, da volta às aulas em setembro até o mês de junho, quatro  horas por semana, ao lado de minhas atividades de acadêmico, de chefe de departamento, me esforcei para ser um professor razoável. Ensinei história e geografia já que são disciplinas que me interessavam e que não requeriam uma formação específica como o inglês ou as matemáticas, pelo menos no nível escolar em que eu trabalhava.
Como acaba se construindo uma relação com os alunos?

Sem me dar muito conta disso, os alunos eram sensíveis ao fato de eu me interessar por eles como
pessoas, isto significa que eu falo com eles, que eu me lembro de suas notas, de suas histórias (...) No
fim do ano, eles gostavam muito de mim. Me deram presentes. Fizeram uma festa quando eu fui
embora. Enfim, eles me suportavam. E eu também. Era uma relação muito complicada já que era ao
mesmo tempo afetivo, muito disciplinar e muito rígido. Com os alunos, digamos que eu tive o sentimento que começava a aprender pouco a pouco a dar aulas.
Quando olho para os meus colegas, havia muitos deles que eram muito fortes, que davam boas
aulas. Havia outros que visivelmente, não conseguiam. O que mais me chamou a atenção, foi o clima
de receio para com os alunos na sala dos professores. Isto quer dizer que alguns professores tinham
medo antes de entrar na sala. Não era um colégio violento. Não havia agressões, não havia insultos
mas era obviamente uma provação; como fazê-los trabalhar, como fazer com que ouçam, como fazer
com que não façam barulho? Esta é a dificuldade, não é a violencia.
Mas numa sala de professores, nunca se fala disso, todo o mundo parece ser um bom professor.
Mesmo que a gente visse colegas chorando, ou outros que nunca vinham, que passavam pelo corredor. No final das contas, achei que a descrição que os professores entrevistados faziam na pesquisa era bastante correta. Realmente, a relação escolar é
quando não funciona, a gente se desespera. Eu vivi muito dificilmente este ano, aliás, no Natal queria parar.

a priori desregulada. Cada vez que se entra na sala, é preciso reconstruir a relação: com este tipo de alunos, ela nunca se torna rotina. É cansativa. Cada vez, é preciso lembrar as regras do jogo; cada vez, é preciso reinteressá-los, cada vez, é preciso ameaçar, cada vez, é preciso recompensar (...) A gente tem o sentimento de que os alunos não querem jogar o jogo e é muito difícil porque significa subtemer à prova suas personalidades. Se eu falo de charme, de sedução, não é por narcisismo, é de fato o que a gente realmente experimenta. É uma experiência  muito positiva quando funciona, a gente fica contente;
O que este “golpe de estado” mudou fundamentalmente?

Para mim foi muito negativo porque a gente se sente reduzido a expedientes. Fiz reinar o terror
durante algumas semanas e depois relaxei. Mas eles sabiam que todos os meses, eu teria recomeçado. No fundo eu estava persuadido, como professor universitário, que a gente podia jogar com a sedução intelectual. Falando bem e sabendo mais coisas do que eles, eu achava que podia seduzí-los intelectualmente. Nenhum efeito. Foi preciso mobilizar muitos registros, sedução pessoal, ameaças, disciplina, que eu desconhecia completamente, que nunca havia usado na minha vida universitária. Mas é uma história fracamente controlada. Isto significa que a gente não consegue observar e dar aula ao mesmo tempo. A gente dá aula e só faz isso. Depois de alguns anos, talvez se tenha experiência suficiente para ver as coisas e fazê-las ao mesmo tempo mas, neste ano, me comportei como um iniciante. O “golpe de estado” é um fracasso pedagógico e moral, mas permitiu fixar uma ordem bastante estúpida a partir da qual a gente pode tentar controlar uma relação pouco regulada. De fato, no colégio, é preciso trabalhar na transformação dos adolescentes em alunos quando eles não têm vontade de se tornar alunos. Podemos fazer outras observações muito banais sobre a heterogeneidade das classes. Estamos lidando com alunos extraordinariamente diferentes em termos de performances escolares. Somos obrigados a dar aula a um aluno teórico, um aluno médio
que não existe, tendo de certa forma o sentimento de que vamos deixar um pouco de lado os bons
pelos seus problemas de adolescentes e a comunidade dos alunos é “por natureza” hostil ao
mundo dos adultos, hostil aos professores. Eles podem encontrar um professor simpático, eles podem
encontrar um professor interessante, mas de qualquer forma, eles não entram completamente no jogo. Eles permanecem nos seus problemas de adolescência, de amor, de amizade e o professor fica
sempre um pouco frustrado porque, mesmo se os alunos queiram, individualmente, estabelecer relações com os professores, coletivamente, eles não querem tê-las.
Eis um pouco do que eu observei e devo dizer que isto correspondia exatamente ao que diziam os
professores nas entrevistas individuais ou coletivas. Eles não exageram. É realmente uma situação em que a gente tem grandes dificuldades para conquistar os alunos. É um trabalho que se recomeça a cada dia embora, repito, não se trate de alunos malvados, agressivos, racistas, mas antes alunos fracos em geral.
 La galère: jeunes en survie. Paris: Fayard, 1987; Les lycéens
alunos, porque existem, e que vamos deixar de lado os maus alunos. Outra coisa que me chamou a atenção, são alunos que, depois de dois meses, “entraram em greve”, alunos que nada fizeram. Tiravam zero em  todas as provas, não faziam nada, eram muito gentis mas tinham decidido que não trabalhariam. É completamente desesperador: no início eu os puni e no fim não os punia mais, já não adiantava, tê-los-ia punido todos os dias. Os alunos são adolescentes completamente tomados

O que é que você achou dos programas escolares?

É uma das coisas mais espantosas. O programa é feito para um aluno que não existe. Digamos
mais simplesmente que é feito para um aluno extremamente inteligente. É feito para um aluno cujo
pai e cuja mãe são pelo menos professores de filosofia e de história. É feito para uma turma que trabalha incessantemente. O programa é de uma ambição considerável e não se pode realizá-lo materialmente. O programa é também uma grande abstração, até em história e em geografia. Por exemplo, não há cronologia, é uma história de sociólogos, não é uma história que conta histórias. Por isto, fiz como todos os meus colegas, daí a metade do programa e contei a história, mas nada do que pediram que eu fizesse. Até porque as pessoas acham que os alunos que cumpriram este programa adquiriram completamente os dos anos anteriores. Procura-se então outros meios, mas é muito demorado. Eu os levei para ver um filme sobre a Idade Média na televisão: O Nome da Rosa. Assistir ao filme levou quatro horas porque era preciso explicar as palavras: a palavra inquisição, a palavra ordem religiosa (...) Eu diria que este sentimento de absurdo da situação pedagógica é reforçado pelo fato dos programas se dirigirem para alunos abstratos, alunos que não existem, enquanto que, quando eu estava em cinquième (segundo ginasial), com a mesma idade deles, tinha programas infantis, programas muitos simples. A gente experimenta um descompasso entre os programas e os alunos. Isto faz com que o trabalho do professor seja muito cansativo com o tempo e entretanto, muitos professores o fazem muito bem, apesar de tudo. Mas muitos jogam a toalha. Isto significa que eles fingem dar aula para alunos que fingem ouvir. Entretanto, os alunos parecem sensíveis ao fato de que a gente quer vê-los bem sucedidos.
Gostaria de apontar duas outras dificuldades. A primeira tem a ver com a extrema brutalidade da seleção. Os conselhos de classe são cansativos porque na verdade, a gente decide o destino dos alunos em alguns minutos. A segunda coisa é a manutenção de uma ficção sobre os alunos. De certa forma, por estarmos numa sociedade democrática, a gente considera que todos os alunos têm o mesmo valor, que eles são iguais. Ao mesmo tempo, eles têm obviamente performances desiguais. Porém, a gente sempre lhes explica que se eles não obtiverem bons resultados é porque não trabalham bastante, e na realidade, isso nem sempre é verdadeiro. É por eles terem dificuldades de outra ordem, porque isto não interessa para eles (...) Nunca se lhes dá realmente os meios de compreender o que lhes acontece.
Só se diz para eles: se você trabalhar mais, terá melhores resultados. Mas eles sabem que isto nem
sempre é verdadeiro; há, então, um tipo de ficção no julgamento escolar que faz com que nunca se
permita aos alunos suas própria explicações ou que  tomem realmente em mãos as suas próprias dificuldades. É o preço de um sistema que é ao mesmo tempo democrático, quer dizer, um sistema em que todo mundo é igual e meritocrático, isto é, que ordena os valores.
(Reprodução Parcial)















Assim, muitos alunos são extremamente infelizes na escola, sentem-se humilhados, magoados.
Eu tenho a imagem de uma relação bastante dura que é compensada por toda a sua vida juvenil, por
suas brincadeiras, por seus amigos. Mas para muitos alunos, a situação escolar não tem nenhum sentido.
E é portanto vivida como uma pura violência, não uma violência simbólica de classe como diz Bourdieu, mas uma violência individual pedagógica, de relacional.